domingo, 31 de dezembro de 2006

Sobre Amizade

Novo Ano começando.
Momento de reflexão, avaliação e planejamento.
“O que fiz do tempo que passou?”
“O que farei do tempo seguinte?”
Pois é, ao entrarmos na existência temos que o limite torna-se nosso companheiro inseparável
. . . “Eu não sei nem mesmo a data da minha morte!” . . . destaco então que, nesta caminhada, importa as Amizades que cultivamos.
E neste papo de Amizade, vale destacar alguns pontos que considero “supimpas” . . .
Afirmar que a tradição ocidental do pensar, iniciada [lá e então] com os filósofos gregos, elegeu a Amizade como o pano de fundo do saber, é onde começamos. Etimologicamente, falar em "filosofia" nos remete para o "amor da sabedoria", ou ainda, ao "amigo da sabedoria" [confesso que sempre achei extremamente elegante o significado deste termo].
Existe um diálogo de Platão dedicado exclusivamente ao tema da Amizade, chama-se: "Lísis ou da Amizade". Os protagonistas deste diálogo são Sócrates, Lísis, Hipótales, Ctesipo e Menéxeno [poderiam ser: João, José, André, Lucas e Pedro – e passar-se nos dias atuais]. A primeira perguntinha básica que Sócrates lança, a respeito da amizade, é a seguinte:
". . . quando alguém ama outra pessoa, quem se torna amigo: quem ama é o amigo do amado, ou é o amado o amigo de quem ama? Ou não haverá diferença?".
Se teu cérebro não torceu nesta frase, leia novamente, pois importa justamente bem realizar esta torção.
A reciprocidade, que num primeiro relance parece ser a correta resposta, mostra-se insuficiente . . . existem certos estados de Amizade que não são retribuídos; por exemplo(?) a Amizade pela própria Sabedoria (aquela desenvolvida pelo filósofo); ou a Amizade pelo vinho . . . dois exemplos de estados de Amizade que não são retribuídos pelo ser amado.
Conclusão surpreendente de Sócrates – neste momento do Diálogo – é a de que ". . . se o amigo não é nem o que ama, nem o que é amado, nem, ainda, os que amam e são amados? Ou haverá, fora desses casos, quem possamos considerar amigos entre si?". Mesmo a hipótese da Amizade ter como característica nascer entre semelhantes não se sustenta; como demonstra Sócrates: “haverá alguma amizade entre dois malvados?”.
Isto faz implicar que a Amizade só pode nascer entre semelhantes que sejam ao mesmo tempo pessoas de bem. Sócrates diz então à Lísis:
"Assim, meu caro, sou de parecer que quando dizem que o semelhante é amigo do semelhante, querem significar que apenas o homem de bem é amigo do homem de bem, e que os maus nunca chegam a formar verdadeira amizade, nem com os bons nem com os maus."
Gente boa esse tal de Sócrates . . .
Porém, como o bom se basta a si mesmo, não necessitando de nenhum auxílio naquilo em que se basta, não necessita de nada e, a nada se tornará afeiçoado. Putz! Então, a Amizade, se não é fruto de um relacionamento entre semelhantes (tanto faz se bons ou malvados), será que pode nascer de um relacionamento entre contrários?
Sócrates responde negativamente a esta pergunta.
A pergunta seguinte nos coloca na interrogação sobre a possibilidade de haver então Amizade entre pessoas dotadas de qualidades absolutamente contrárias . . . e mais uma vez Sócrates nos oferece uma resposta negativa.
O ponto onde chega o filósofo é o de que só podem ser amigos aqueles que não são nem totalmente bons nem totalmente maus. E são amigos daquilo que é Belo e/ou Bom. Ou seja, "o que não é nem bom nem mau torna-se amigo do bem em virtude da presença do mal". Mas então, se deixássemos de lado a presença do mal, não seria necessária a amizade ao bem; e ainda assim seríamos amigo de alguma coisa. O que vemos então, conduzidos por Sócrates, é que não é o mal a origem da Amizade. Ainda bem!!! Qual será então a causa da Amizade? O que nos impulsiona a amar e a sermos amados?
O próximo passo de Sócrates nos leva a concordar que amamos, que desejamos, aquilo que nos falta. E que, se nos faz falta, é porque dele fomos privados. Sendo assim, "o amor, a amizade e o desejo, . . . , ao que parece, se relacionam com o que nos é próprio". A Amizade, então, acontece porque alguma coisa que existe pertence aos dois seres que se amam. Só sentimos Amizade, ou Amor, ou Desejo, por aquele ou aqueles com os quais nos identificamos. Daí Sócrates concluir que:
". . . amamos necessariamente o que nos é próprio."


E é justamente sobre este misterioso processo das identificações que Freud, mais de dois mil anos depois de Platão, se debruçará, a fim de procurar responder sobre os movimentos que fazem com que os homens se reúnam e permaneçam reunidos. Freud explica (?).
É inegável a contribuição de Freud para o entendimento da vida social. No seu texto "Psicologia de Grupo e a Análise do Ego" (alguém aí é de 1921?), o barbudo procura "lançar luz sobre a psicologia de grupo" a partir da utilização do seu conceito de Libido. P'ro Dr., Libido pode ser definido da seguinte maneira:
"Libido é expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome à energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra 'amor'. O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é isso que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual, com a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso - que, em qualquer caso, tem sua parte no nome 'amor' - , por um lado, o amor próprio, e, por outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem como a devoção a objetos concretos e a idéias abstratas. Nossa justificativa reside no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou que todas essas tendências constituem expressão dos mesmos impulsos instintuais; nas relações entre os sexos, esses impulsos forçam seu caminho no sentido da união sexual, mas, em outras circunstâncias, são desviados desse objetivo ou impedidos de atingi-lo, embora sempre conservem o bastante de sua natureza original para manter reconhecível sua identidade (como em características tais como o anseio de proximidade e o auto-sacrifício)."
É interessante percebermos que através da implicação do conceito de libido no estudo da vida dos grupos, Freud acentua a importância da noção de "Amor" na constituição e manutenção da Vida no interior e entre os diversos grupos. A hipótese central em sua observação da vida grupal é a de que as relações amorosas, os laços emocionais, constituem a base sob a qual se constitui a trama da vida social. Sua argumentação em favor desta hipótese encontra apoio em dois pontos. O primeiro é de que somente um poder pode fazer com que um grupo se mantenha unido: "Eros, que mantém unido tudo o que existe no mundo". O segundo ponto é o de que a busca da identificação entre os membros num grupo, só é possível quando o indivíduo abre mão de sua “distintividade”, buscando desta forma estar em harmonia com o grupo - "ihnen zu Liebe” (“pelo amor deles”).
A partir do estudo de dois grupos específicos (o Exército e a Igreja), Freud considera que são de dois tipos os laços emocionais que dominam os grupos: 1) o laço estabelecido com o líder; 2) o laço mantido entre os membros do grupo. É interessante percebermos: desta maneira Freud indica que os laços libidinais estabelecidos com outras pessoas são o fundamento da vida intragrupal à isto implica em uma limitação do narcisismo. No entender de Freud, "o amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos". Para Freud, o grande responsável pelo desenvolvimento do processo civilizador é o "Amor", ou seja, o estabelecimento de laços Libidinais . . . Liebe, Liebe, Liebe . . .
"E isso é verdade tanto do amor sexual pelas mulheres, com todas as obrigações que envolve de não causar dano às coisas que são caras às mulheres, quanto do amor homossexual, dessexualizado e sublimado, por outros homens, que se origina do trabalho em comum."
Para compreender a natureza dos laços libidinais no interior dos grupos, Freud lança sua atenção para os processos das "identificações". Daí extrai três conclusões: 1) "a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto"; 2) de maneira regressiva, a identificação "se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por meio da introdução do objeto no ego"; 3) a identificação "pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto do instinto sexual, sendo que quanto mais importante essa qualidade comum é, mais bem sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim o início de um novo laço".
Freud considera que o Laço Emocional existente entre os membros de um grupo é decorrente de uma Identificação deste terceiro tipo; onde a Identificação possui mais relação com aquilo que gostaríamos de ser . . . “aquilo que gostaríamos de Ser”. Neste sentido, "a identificação esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo". Ao estabelecer a existência "daquele que foi tomado como modelo", Freud nos aponta a característica diferenciadora com relação a ser o homem não um animal gregário, mas sim um animal de horda. “Qual a diferença?” A diferença incide justamente na existência de um “chefe”, de um “líder” condutor da horda.
à "Muitos iguais, que podem identificar-se uns com os outros, e uma pessoa isolada, superior a todos eles: essa é a situação que vemos realizada nos grupos capazes de subsistir."
Neste ponto Freud parece estabelecer uma distinção entre dois tipos de psicologias; 1) uma psicologia individual e 2) uma psicologia do grupo. Apenas o “líder” possuiria uma psicologia individual, os demais membros do grupo estariam sujeitos a uma psicologia do grupo. Psiquismo Individual e Psiquismo Coletivo . . . Nos dizeres de Freud:
"Os membros do grupo achavam-se sujeitos a vínculos, tais como os que percebemos atualmente; o pai da horda primeva, porém, era livre."
Neste contexto, o termo "livre" está significando a existência de poucos vínculos libidinais. Segundo Freud, a única coisa que poderia impor um certo limite a natureza dominadora e narcísica do líder da horda seria o "Amor". Desde o seu ponto de vista podemos entender o "amor/vínculo libidinal" como sendo um importante fator de civilização.
A partir de sua teoria da libido, Freud estabelece algumas relações e distinções entre os estados de “estar amando” e de “formação grupal”. Para ele, "estar amando baseia-se na presença simultânea de impulsos diretamente sexuais e impulsos sexuais inibidos em seus objetivos, enquanto o objeto arrasta uma parte da libido do ego narcisista do sujeito para si próprio. Trata-se de uma condição em que há lugar apenas para o ego e o objeto". O estado de formação grupal baseia-se, por sua vez, totalmente em impulsos sexuais inibidos em seus objetivos, na substituição do ideal do ego pelo objeto, e também na identificação com outros indivíduos, por terem eles o mesmo tipo de relação com o objeto. Podemos dizer, seguindo as idéias de Freud, que as relações de Amizade encontram-se justamente dentro deste estado de formação grupal.
Entendendo que o Processo Civilizatório é dependente do relacionamento entre um número considerável de pessoas . . . podemos confirmar a importância que as relações de "Amizade" possuem. A "Amizade" pode ser entendida, em Freud, como: Amor Inibido em sua Finalidade . . .
"O amor com uma finalidade inibida foi de fato, originalmente, amor plenamente sensual, e ainda o é no inconsciente do homem. Ambos - o amor plenamente sensual e o amor inibido em sua finalidade - estendem-se exteriormente à família e criam novos vínculos com pessoas anteriormente estranhas. O amor genital conduz à formação de novas famílias, e o amor inibido em sua finalidade, a "amizades" que se tornam valiosas, de um ponto de vista cultural, por fugirem a algumas das limitações do amor genital, como, por exemplo, à sua exclusividade".
As relações de Amizade visam justamente fortalecer os vínculos comunais através do estabelecimento de fortes identificações entre os membros . . . “Fala, Galera!!!”. Para que esse objetivo seja alcançado é inevitável que ocorra uma restrição à vida sexual. As idéias de Freud apontam para a importância de uma discussão a respeito do tema da Amizade, para se realizar uma melhor compreensão dos fundamentos da vida social.
Francisco Ortega (“Amizade e Estética da Existência em Foucault” - 1999) pretende justamente trazer à discussão o tema da "Amizade" no pensamento de Michel Foucault . . . que turma, hem?; Sócrates, Freud e Foucault!!! . . . como um aspecto de sua obra ao qual, até o presente momento, deu-se pouca atenção. O autor atenta para o lance de que o conceito de "Amizade", em Foucault, "toma apenas forma (impressionista) nas suas entrevistas", pois os seus livros não tratam diretamente deste tema. Segundo Ortega, "a amizade representa uma procura e uma experimentação de novas formas de relacionamento e de prazer; uma forma de respeitar e intensificar o prazer próprio e do amigo". Deste ponto de vista, a Amizade representa um jogo agonístico e estratégico, que consiste em agir com a mínima quantidade de domínio.
Porém, diferente de Freud, Foucault não vê a Amizade destituída de seus conteúdos sexuais. Para Foucault, a Amizade se realiza até mais intensamente através das trocas sexuais. A Amizade, juntamente com a Sexualidade, são tematizados por Foucault com o objetivo de constituir uma Estética da Existência alcançável através de um certo trabalho/investimento sobre si mesmo . . . uma forma de ascese, que encontra na Amizade o seu eixo central.
Para Ulrich Beck a sociedade moderna constitui-se de tal forma que o indivíduo se percebe cada vez mais diante de um contexto social inseguro, podendo contar apenas consigo mesmo para configurar uma forma de existência capaz de superar as dificuldades trazidas pelo processo de modernização. Para Beck e outros sociólogos, a sociedade moderna se caracteriza por uma forma tríplice de individualização:
"a. deslocamento das formas sociais historicamente prescritas, como a família, o matrimônio, a profissão; b. perda da segurança obtida mediante normas, crenças e conhecimento da ação; c. estabelecimento de novos vínculos na forma de dependência do mercado de trabalho, do consumo e da mídia."
Desta dissolução (lembrem-se: “Tudo que é sólido desmancha no ar!”) das formas tradicionais de relacionamento, emerge a figura que melhor caracteriza nossa época, o solteiro (“é mole?”). Este personagem tem a plena capacidade de cultivar uma intensificação de sua rede de Amizades. Daí a idéia de que o indivíduo é o arquiteto de uma ampla rede de relacionamentos sociais por ele próprio cultivada. A Amizade aparece, nesta forma de pensamento, como uma alternativa, uma saída situada entre "uma saturação de relações surgidas da dinâmica da modernização e uma solidão ameaçadora". Foucault, porém, não privilegia na Amizade sua função compensadora, prefere sublinhar o potencial caráter transgressor da Amizade . . . “Amigos do Mundo: Uni-vos!”
Interessa essencialmente captar da Amizade que ela pode ser constituidora de diferentes formas livres de comunidade. Ou seja, "a amizade é uma forma de vida, cuja importância reside nas inúmeras formas que pode encarnar". Enquanto forma de vida, vale a pena ressaltar que este conceito, introduzido por Giorgio Agamben, vem definir:
". . . uma vida inseparável de sua forma e no qual precisamente a forma de vida é o importante. O conceito exprime um tipo de comunidade definido através das possibilidades de vida."
O conceito de Amizade aparece como um elemento de ligação entre os fenômenos de elaboração individual e de subjetivação coletiva. Para Foucault, a Amizade é um convite à experimentação e criação de diferentes estilos de vida e de comunidade. A Amizade aponta justamente para a possibilidade de intensificação da experimentação de formas de vida. Fiquemos com a seguinte citação de Foucault sobre o conceito de forma de vida:
"O conceito de forma de vida parece-me importante. Não se deveria introduzir uma diferenciação mais sutil, que não procedesse segundo classes sociais, grupos profissionais ou níveis culturais, mas orientada para o tipo de relação, ou seja, para o 'modo de vida'? Um modo de vida pode ser compartilhado por indivíduos que se diferenciam em relação à idade, ao status e à atividade social. Pode conduzir a relações intensas que não se assemelhem a nenhuma relação institucionalizada. E um modo de vida pode culminar, creio, em uma ética e uma cultura."


É isso aí Galera . . .



Por enquanto é isso . . .

Um comentário:

Mari B. disse...

Menino, muito grande isso! Mas muito interessante... Só ainda não deu pra eu terminar de ler tudo. Voltarei em breve.
=)
Quero ler esse diálogo de Platão que você mencionou.
Beijocas.